Gostava do intenso, como quando sua vontade de chorar era tão imensamente avalassadora que, ao contê-la, seu coração batia sem controle, quase rasgando o corpo e pulando por ser tão forte; segundo ele, era somente aí que seu dia valia o oxigênio gastado para vivê-lo. Ou quando a simples felicidade de ouvir uma música, de receber um beijo, de perceber que a vida é tão bela e rara em suas singelas particularidades era tão súbita que algumas lágrimas caíam dos seus olhos e ele simplesmente sorria calado, inebriado com o prazer de sentir! (tum-tum-tum, meu coração escritor palpita gostoso agora), também quando a dor de ver uma criança faminta implorando por pequenezas machucava sua consciência a ponto de fazê-lo vomitar um gemido indignado. Era nesses momentos que se enchia da contente certeza de que sua alma ainda estava ali, de que ele não era apenas o pedaço de corpo apalpável e visível que a envolvia, mas algo muito mais sensível e bonito - aquela luz que já mencionei, cheia de vida em sua imortalidade despretensiosa. Ele era um animal, um vegetal, uma flor, uma bactéria, uma liga metálica de uma ferramenta, ele era o vidro, o ar, você, um pernilongo, o pelo de um elefante. Ele não existia, pois talvez fosse apenas um fruto da imaginação da escritora que o descrevia com um sorriso no rosto, mas ainda assim era muitíssimo real em sua essência, em seu gosto e em seu sabor tão parecidos com o da mesma.
Bem, ele estava ali, como um pedacinho de alguém que não possui a menor importância na vida de qualquer pessoa e que se satisfaz ao entender que isso basta para um começo. Ele estava materializado numa folha de papel e jazia imóvel sobre a mesa de madeira de uma humana. Esta eu não conheço e provavelmente não existe, mas possuía orelhas um pouco grandes demais, um sorriso gentil e um bocado de calos nos dedos; calos estes - descubro enquanto escrevo - adquiridos em suas exaustivas práticas na harpa. Pois veja que coincidência bonita, os dedos da moça, bem com os meus, também dançavam em sua arte, em sua própria forma de transbordar o mundo com uma beleza intangível. Beleza esta que - creio eu - se tornava maior ainda quando, junto aos dedos seus, as lágrimas de frustração dos olhos pareciam cair numa sincronia desengonçada (o que dava mais sentimento ainda àquilo que já soa naturalmente perfeito de tanto ser o sentir). Nela também os cabelos eram acobreados porque haviam sido tingidos assim e, voltando à sala, alguns lápis encontravam-se sobre aquele pedaço de papel (o nosso amigo, já falamos sobre ele), numa posição meio tentadora e chamativa que sussurrava quase piscando: "vem, desenha comigo". Aconteceu que, sem querer, enquanto seus dedos tentavam e fracassavam nas notas de Debussy, realmente veio na cabeça da menina uma vontade louca de desenhar. Ela pegou o Papel (usarei a letra maiúscula para que não se confunda com os outros tantos papéis que haviam espalhados pela casa) e encostou a ponta de seu lápis favorito nele. O lápis era favorito porque era o único de todos os outros que não tinha um pedaço de borracha em sua extremidade oposta e sendo assim, a menina sentia que naquilo que tivesse a criar fosse haver maior chance de virar eterno, salvo em sua forma original, sua essência transbordando de tantas imperfeições. Começou e assim foi desenhando; fazia uns traços meio tortos enquanto eu pensava "Papel de certo sentiria cócegas se ainda fosse humano como nós". Perdão, conjuguei o verbo erroneamente, o certo seria enquanto eu penso. Pois a moça que não existe está desenhando agora, e seu desenho está ficando extremamente bonito - vejam, eu consigo ver - e ela não para de mexer os dedos já acostumados à rapidez da harpa, ela vai formando figuras, vai formando algumas coisas que não sei nomear e que talvez nem figuras sejam, e de repente, de repente ela pára. Ela corre para seu quarto e pega da mochila uns lápis coloridos que pintam em várias cores (verde, azul, amarelo, vermelho, marrom e muitas outras), corre de volta para Papel e vai pintando o seu desenho, enchendo o papel de cores que ele não vê (só sente), e enquanto pinta a menina sorri e o Papel sorri também, e eu sorrio mais ainda. A menina que sempre treinou harpa (tum tum tum, meu coração tá delirando com a perspectiva do fim desse pseudo-conto), a menina que nunca havia conseguido a harpa mesmo sempre amando-a bem bonitamente, e que um dia vai se tornar uma grande harpista (acabo de decidir isso, ela merece!), essa menina desenha agora um desenho tão bonito que já dou uma quase gargalhada enquanto o desenho não se termina (por que terminaria?) e a história acaba me apertando o coração com um toque satisfeito.
sexta-feira, 12 de outubro de 2012
A menina e o Papel - e eu
É difícil escrever uma história quando se sabe da existência da alma e do que não é material, físico ou apalpável e sim luz, sem forma, sem cor, sem som. É difícil porque posso não ser entendida por aqueles que só sabem ler a linguagem literal e não imaginam - tampouco sentem - aquilo que é mais real ainda, mesmo sendo nomeado "figurado". Por isso, já aviso: se há em você alguns grilhões mentais que te prendam à esse plano terrestre, não me leia. Sou o tipo de escritora (peço licença enquanto vanglorio-me um pouquinho ao nomear-me assim) que escreve chorando, com sua alma brilhando e os dedos inquietos dançando uma valsa pouco barulhenta. Agora, tendo alguns já parado de ler, sinto-me melhor para aqui começar a contar aos de mente fértil um pouco da história que ainda não criei, que ainda não existe e que tampouco sei como encetar.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Parabéns! Belíssimo "pseudo-conto". Seu talento e sua intimidade com seus sentimentos são algo absurdamente incrível. Excepcional.
ResponderExcluirAhh, fico tão agradecida! Obrigada, obrigada mesmo, não só por ter lido como por ter me criticado assim, tão profunda e belamente. Um abraço.
ResponderExcluirCara... fiquei sem palavras.
ResponderExcluirNão acho q haveria algum palavra qualquer para definir quão incrível é esse conto.
É, realmente, muito bom saber q existe alguma pessoa como vc em algum lugar.
Original em suas palavras e sincera com seus sentimentos.
Meus sinceros parabéns para ti, senhorita.