Tinha uns nove ou dez cachinhos em cada uma das mechas que formavam seu cabelo. Eram castanhas-claras, levemente acobreadas, um tom bem bonito de cabelo que só o cabelo dela era capaz de possuir. Entre os dentes da frente havia um pequeno espaço, suficientemente grande para que uma linha de fio de tecido pudesse passar antes de ser capturada pela agulha e feita blusa de uma moça tecelã. Sua pele era clara, quase amarelada, como se o sol tivesse desbotado e refletido um verniz colorido. Os lábios eram corados, e quando mordia morangos e suco escorria pelo queixo, ao invés de um monstrinho com sangue escorrendo, parecia apenas um anjo degustando uma fruta. Os cílios espessos pareciam capazes de provocar um pseudo-vendaval quando piscavam forte. As íris eram escuras, o queixo, macio, e traços maduros mas suaves desenhavam o seu rosto...
Não sei dizer com o que ela parecia fisicamente, talvez porque eu creia demais na inexistência de palavras para definir a beleza que transborda um'alma humana. Digo isso porque aquela menina era, com certeza, uma alma, que recebera da vida uma bonita casca como abrigo; não o contrário. E ela tinha o dom das palavras, o poder das palavas, a consciência de que elas eram uma arma docíssima e que possuíam, em si mesmas, a exímia capacidade de mudar nossa esfera armilar. Talvez por entendê-las assim tão bem, periodicamente perdia-se entre elas, deixava que elas a fagocitassem e, humildemente, curvava o corpo como numa referência de pleno respeito e se esquecia de erigir-lo novamente. Era uma menina muito privilegiada, porque recebera de Deus uma gigantesca sensibilidade e olhos imensamente perceptíveis, que a ajudavam na arte de vomitar palavras e fazê-las massagear o coração de quem as absorvia, e ficava à toa, ansiando por alguém disposto a dedicar-se na tarefa de entendê-la, de ajudá-la a proliferar um pouco dos bons valores pelo mundo afora, sem perceber que eu o fazia da minha forma, observando, calado, com um acanhamento apaixonado, quase doentio. Apesar de sempre achar a felicidade perto de si e a belezura nas coisas presentes, tinha um pouco dessa humanidade que a fazia procurar mais longe o que estava ali, bem próximo.
Às vezes eu cantava em sua homenagem. Era um assobio comprido, leve, que chamava o Vento e o fazia balançar os fios de cabelo que caiam em seu rosto, incomodando a vista. Eu era apaixonado pela forma como ela os tirava, delicadamente, colocando atrás das orelhas; a forma como amarrava seus sapatos, fazendo dois laços apertados; sua voz desafinada, que cismava em soar em alto som quando passeava pela rua com os fones tremendo os tímpanos. Ficava olhando-a de cima quando sentava na terra do parque e lia seu romance e quando se atrevia a pegar um lápis e um papel e escrevia sua própria história, com as pernas cruzadas uma sobre a outra.
Eu não tenho nome, tampouco consciência de muitas coisas, mas duas sei: nutro um amor insano por uma humana e morro todos os dias, quando o sol se põe. Todas as manhãs, quando arregalo os olhos, eu e os outros passarinhos cantamos de alegria; eles, por estarem vivos, eu, por ter mais uma chance de ver o meu anjo antes de morrer. Temo um pouco, pois nunca falam sobre o paradeiro da alma das aves, e receio ir parar em lugar nenhum, sumir na imensidão no infinito e fazer da minha existência algo tão insignificante que não encontro palavras para comparar. Que vida desgraçada essa era que eu vivia, martirizando-me constantemente com a agonia da morte iminente, afundando num rio amargo e melancólico que era só meu e dos meus amigos. Tomei consciência disso dia desses, quando a menina lia sobre a árvore em que eu me apoiava e, em voz alta, falava sobre a minha espécie, sem saber que eu a espiava. Ela deve ter se interessado muito por aves em algum momento de sua vida, pois também tentou desenhar-me, mas suas habilidades com traços e riscos e imagens eram tão desastrosas que cheguei a assobiar, zombeteiro, desse lapso de talento da minha jovem escritora.
Uma vez, eu tirei coragem de algum lugar dentro de mim e cheguei pertinho dela. Ela estava andando na rua com seus fones de ouvido, cantarolando e sorrindo bem ligeiramente. Voei, acompanhando-a durante o percurso, até que ela reparou em mim, parou, abriu sua bolsa e tirou dela um pedacinho de pão. Esmigalhou-o em suas mãos e as colocou na forma de concha, como que para eu degustar. Cheguei pertinho e provei de seu pão e explodi de alegria, voando e assobiando alegremente ao redor dela, que só ficou rindo, rindo, aquele riso tão lindo.
Pois depois do pôr do sol daquela noite, minha alminha descobriu qual seria seu destino pós-morte. Uma passarinha, que era louca de amor por mim - mas um tipo diferente de amor, mais fraternal e menos romântico - empurrou-me de meu galho enquanto eu dormia, para que eu pudesse partir sentindo aquela sensação tão maravilhosa, ao invés de num dia qualquer, entorpecido da sensação moribunda que as noites traziam.
Agora, que estou aqui, cantarolando docemente e desenhando a imagem da minha princesa dentro da minha cabeça (aquela menina, de jeito bondoso, que deu-me um pedaço de seu pão) posso afirmar: os passarinhos que morrem vão para o Céu.
Lindo.
ResponderExcluirObrigado por nos emprestar essa sua visão aérea.
Eu, realmente, consigo imaginar essa menina como vc disse. Ela está começando a me interessar tb com toda a sua originalidade e sua paixão pelas metáforas. Sinto-me como um detetive a desvendar algum tipo de segredo maravilhoso q foi investigado por poucos. Suas pistas me deixam cada vez mais interessado a cada passo e sinto q, é um caso q não poderei resolver por mais q eu me empenhe... é isso q tem de mais incrível em vc, pq, como um bom detetive q sou, oq me interessa é o percurso, os enigmas a serem resolvidos e as pistas deixadas pelo culpado.
Vc é culpada de um crime q eu não sei qual é e,
talvez, não de em nada, mas, vale o percurso e a emoção q as análises das suas pistas me dão.
Continue assim.
Talvez, vc já saiba quem sou, mas, vou te dar um gostinho da investigação. xD