Não era muito velho nem muito novo. Não parecia querer chorar. Tinha jeito de quem morria de fome, se vestia mal e cheirava tristemente.
Todos os dias eu passava por esse homem, pois o ônibus que me permitia chegar a minha casa passava pela esquina na qual ele morava. E todos os dias eu o via no mesmo lugar, aparentemente fora de si - ou talvez dentro até demais- , fazendo os mesmos movimentos com os braços: chacoalhando de um lado para o outro, muitas vezes parecendo tocar sua guitarra invisível (não com tanta maestria como jimmi hendrix, mas provavelmente com grandiosa dedicação também).
Aquele homem, ouso dizer, não fazia diferença na vida de ninguém. Nós, seres humanos moradores naquele bairro, éramos indiferentes a sua existência, ainda que de certa forma ele transbordasse uma curiosa maluquez e que pusesse medo em senhoras e crianças de forma freqüente.
Creio eu, ó mulher preconceituosa, que aquele homem não tinha a menor noção de como era abençoado por ser um Ser; ele não sabia que em cada átomo do seu corpo havia a essência da vida, o Amor. Aquele homem apenas respirava, abusava de substâncias que delimitavam sua consciência e se reduzia, sem saber que a vida era tão maior que isso!!, à inércia. Se aquele homem um dia teve sonhos, o descompassado movimento de seus braços não deixava transparecer. Se aquele homem amava e sorria, a palidez de seu olhar escondia ferozmente.
Foi justamente isso que me incomodou certa vez, enquanto passava por ele ouvindo Debussy. Acredito veemente que as musicas possuam uma capacidade aguda de potencializar a nossa sensibilidade e muitas vezes abrir os nossos sentidos para simples verdades, e há, além disso, algo de muito peculiar nas melodias clássicas. Atenta à sua indiferença em relação à mim e vice-e-versa, neste dia descobri que aquele homem não sabia que existia - mas será que eu sabia?
Tal questionamento me entristeceu.
Assim, subitamente, pus-me a refletir também sobre todas as outras pessoas, inclusive sobre aquelas que possuem casa, cheiram a perfume, não morrem de fome mas tampouco vivem de nada. São seres fantásticos e vibrantes, muitas vezes já foram adolescentes revolucionários, que cresceram e deixaram escapar o brilho dos olhos. Acostumados com a rotina que matam dia após dia um pouquinho do que são, não possuem tempo para aproveitar os pequenos prazeres da vida, tampouco possuem tempo para criticar o próprio comportamento padronizado. São seres que abandonaram os seus sonhos ao seu acomodarem com um presente pouco satisfatório, graças ao medo das consequências que os riscos podem proporcionar. Acordam todos os dias mas não tem vontade de levantar, pois a perspectiva do dia que está por vir não os estimula. Trabalham até cansar, muitas vezes executando tarefas indesejáveis, e no fim do dia voltam para casa, para realizar as outras pequenas obrigações rotineiras, tomar banho, comer, dormir.
No fim do mês ganham um dinheiro, e com esse dinheiro pagam por coisas pelas quais nunca tiveram verdadeiro interesse. Coagidas pela sociedade, dia após dias as pessoas esquecem de como são fantásticas. As pessoas não se maravilham com a sua própria existência e ainda acreditam que fazer de suas vidas algo extraordinário é pretensão de filme romântico ou idealização de adolescente anarquista. Mas eu, que sou apenas outro ser, mas que me permito a calma e o gozo do presente, me indago: como podem ter tanta pressa a ponto de se esquecerem de olhar para o Céu? Como se entretem tanto com os comerciais na tv a ponto de não questionarem as coisas como elas são? Aquele mendigo na rua, aquela triste poesia ambulante certamente não sabe que vive, mas será que nós todos sabemos mesmo? Será que vivemos? Eu nos vejo mais como tijolos em uma parede gigantesca que tampa o outro lado do mundo, e vou gritar, vou sussurrar, para que não façamos mais parte dela.
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